Cadê o meu dinheiro?


Arnaldo Niskier

Eu era chefe de reportagem da revista Manchete, no início dos anos 60. Numa certa manhã, fui chamado à sala do chefão Adolpho Bloch, na rua Frei Caneca nº 511. Perguntou se eu conhecia a escritora Clarice Lispector. Não, não conhecia. Então, ele disse que ela era sua conterrânea, nascida na Ucrânia. E que gostaria muito de ser colaboradora da revista. Com o seu jeitão autoritário, determinou que eu cuidasse dela, inclusive na delicada gestão do pagamento.

Foi assim que começamos uma boa amizade. Só que Clarice estava muito necessitada de dinheiro. Entregava as crônicas e queria receber em seguida. A tesouraria de Bloch Editores não era tão rápida assim. Clarice seguidamente me telefonava: “Arrrrnaldo, prrreciso do dinheirrrrro.” Tinha a língua presa e uma impaciência brutal. Arranjei um jeito de colocá-la em primeiro lugar, o que não me livrou dos incômodos da cobrança permanente.

Clarice Lispector (1920-1977) era uma extraordinária escritora. Foi descoberta para a crônica pelo nosso redator R. Magalhães Jr., que, quando leu seus primeiros trabalhos, reagiu de forma assustadora: “De quem você copiou isso?” Os textos eram mesmo dela, não tinha copiado nada. Aliás, toda a família, a partir da mãe tinha o dom da escrita, que se estendia às irmãs Elisa e Tânia Kaufman. Clarice, um dia, explicou: “Criança ainda, quando comecei a ler, escrevia também. Isso veio desde cedo.”

Ela se definiu como uma escritora caótica, intensa e fora da realidade. Tinha timidez e ousadia ao mesmo tempo. Quis sempre preservar a sua liberdade, como autora. Sua preferência era escrever para as crianças, a começar pelos filhos. Por que essa escolha?

“É mais fácil para mim comunicar com as crianças. Sou muito maternal. Os adultos são tristes e solitários.” – disse ela.

Agora, estamos comemorando o centenário de nascimento de Clarice Lispector. No seu livro “Todos os contos” (Editora Rocco) esse pensamento de Edmund White: “Culta, glamurosa, emotiva, ela é uma escritora emblemática do século XX, que pertence ao mesmo pantaleão de Kafka e Joyce.” Pode haver maior elogio?