A flor do cerrado
Arnaldo Niskier
Numa das idas a Brasília, o amigo Silvestre Gorgulho me convidou para conhecer de perto a Torre de TV Digital, por ele inspirada quando foi Secretário de Cultura da capital. É claro que o projeto só poderia ser de Oscar Niemeyer – e assim foi feito. O último trabalho do grande arquiteto tem a beleza característica das suas obras e, no caso, com os seus 688 degraus, alia modernidade e elegância, no ponto mais alto de Brasília. É uma torre-flor, como muito bem disse a filha de JK, Maria Estela Kubitschek Lopes. Flor do cerrado.
Funcionando como atrativo turístico, tem também uma extraordinária serventia, pois lá se encontram todas as redes brasileiras de televisão, transmitindo os seus sinais para o mundo. Uma prova saudável de compartilhamento, que não se encontra em outras capitais do nosso país.
Complemento moderno da Torre de TV, criada nos primórdios de Brasília por Lúcio Costa, a Torre Digital (feita de concreto) foi elaborada com o cuidado de não desfigurar a condição de Patrimônio Cultural da Humanidade, título dado pela Unesco e de que Brasília muito se orgulha. Se cada televisão, ao atingir a fase digital, instalasse o seu “paliteiro”, como em tantos outros lugares, é certo que isso constituiria uma agressão à paisagem, daí a ideia da torre-monumento, logo acolhida por Niemeyer, aceitando os argumentos de Silvestre Gorgulho e de Toninho Drumond. Foi o marco do cinquentenário de Brasília.
Curiosa a discussão em torno do nome. Gorgulho, quando viu os primeiros desenhos do arquiteto, disse que parecia uma flor do cerrado: açucena, ipê, pequi, canela-de-ema, flor para-tudo ou calliandra-do-cerrado. Oscar, muito feliz com o resultado do seu trabalho, gostou da associação feita por Gorgulho. E perguntou: “Por que não flor do cerrado? Sintetiza tudo.” A expressão foi aprovada com louvor. O cerrado ganhou uma nova flor.
Hoje em dia, o monumento, que tem uma bonita sala de exposições, é um dos mais visitados da Capital. Do seu mirante, se vê toda a cidade que revolucionou a arquitetura mundial. É uma visão de 360 graus. Um capítulo interessante dessa obra foi o tempo que durou para obter a licença do Ibama. Mais de um ano. O argumento é que ali era “rota de aves migratórias” e por isso poderia existir um indesculpável prejuízo ecológico. Depois se viu que isso não era exatamente o que ocorreria e a licença foi liberada. Respeitou-se, assim como o arquiteto francês Le Corbusier viu Brasília, no seu começo: “É uma mão aberta. A mão aberta estendida como um símbolo de reconciliação. Aberta para receber. Aberta para dar.”
Quando visitei a Torre Digital, veio à mente o pensamento bem ao estilo de Rachel de Queiroz: “Para que Brasília existisse, foi mister que houvesse a conjunção raríssima de três fatores: dois gênios e um doido. O urbanista de gênio, Lúcio Costa, o arquiteto de gênio, Oscar Niemeyer, e um governante maluco que pusesse de lado todos os critérios de prioridade da realidade nacional e cegamente se atirasse na fascinante aventura da nova capital: Juscelino Kubitschek de Oliveira.”
Esse novo cartão postal de Brasília, construído em Sobradinho, a 170 metros de altura, de onde se pode vislumbrar uma extraordinária vista, serve aos propósitos tecnológicos cada vez mais exigentes das emissoras de televisão, em sua fase digital, foi erguido como que para contrariar a “Sinfonia da Alvorada”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, que a princípio falava em “antigas solidões sem mágoa, o altiplano, o infinito descampado...o céu azul, a terra vermelho-pungente, rios inocentes por entre as matas recordadas...não havia ninguém.” Hoje, há uma imensa população totalmente agradecida diante da beleza desse símbolo.