Os marranos do Brasil
Arnaldo Niskier
Os estudos sobre o marranismo têm despertado grande interesse. As pesquisas sobre Inquisição, cristãos-novos (marranos) e criptojudaísmo no período colonial apresentam um quadro do fenômeno que perdurou quase trezentos anos, marcando a mentalidade brasileira.
Desde o século XVII encontramos cristãos-novos entre os desbravadores e formadores do território nacional. Antonio Raposo Tavares, organizador da primeira expedição de reconhecimento geográfico que abrangeu todo o espaço continental da América do Sul, era de família cristã-nova de Beja.
Em Minas Gerais, atraídos pelas oportunidades do ouro, cristãos-novos vieram de outras regiões do Brasil. Mas, a maioria veio de Portugal. Mantinham roças de mandioca, eram mineiros, negociavam ouro e pedras preciosas, havia alguns profissionais liberais, como médicos, mas principalmente, dedicaram-se ao comércio, trazendo para a região gêneros essenciais para a subsistência.
Negociantes cristãos-novos da Bahia e do Rio de Janeiro enviavam “carregações” para as Minas. Alguns ali mantinham residência, deixando na cidade de origem suas famílias, indo e vindo entre a região e o litoral. Dos presos nas Minas, nas décadas de 1730/40, a maioria era de imigrantes recentes, tendo chegado de Portugal no século XVIII. Foi a região que forneceu mais cristãos-novos às fogueiras da Inquisição: seis foram relaxados à justiça secular. Todos eram naturais de Portugal.
Segundo a professora Anita Novinsky, do Laboratório de Estudos sobre Intolerância–LEI da Universidade de São Paulo, as práticas judaicas em Minas Gerais seram imbuídas de simbolismo e as comunicações secretas se davam frequentemente através de códigos. As observâncias concentravam-se, principalmente, no jejum de Yom Kipur, a guarda do Shabbath, a celebração do Pessach e a festa em honra da rainha Esther, além de algumas das restrições dietéticas.
Foi também a procura e a posterior descoberta do ouro que levou cristãos-novos a se estabelecer em Goiás, objeto de estudo do padre Adalberto Gonçalves.
Entre os cinco presos da região, estava o cristão-novo Antônio Ferreira Dourado, dono de vasta cultura, biblioteca e autor de um poema épico, a primeira obra literária escrita em Goiás, que, confiscada pelos inquisidores, até hoje está desaparecida. Preso em 1761 – um dos últimos cristãos-novos presos pela Inquisição no Brasil – denunciado por criptojudaísmo, foi condenado a cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos Inquisidores.
Foi no Rio de Janeiro que o Santo Ofício atingiu com maior força a comunidade cristã-nova, onde estava estabelecida desde o final do século XVI. A importância dessa comunidade era tão marcante que um viajante francês, François Froger, que esteve na cidade em 1695, considerou que três quartos da população branca da cidade era de origem judaica. Representavam, aproximadamente, 24% da população livre da região no início do século XVIII.
As mulheres dos cristãos-novos desempenharam papel ativo na construção da sociedade fluminense. Conheciam perfeitamente bem o andamento dos negócios dos maridos e pais, e frequentemente eram elas as senhoras dos engenhos e dos partidos, especialmente em caso de viuvez ou da ausência do marido – o que era costumeiro.
Muitas dessas mulheres eram alfabetizadas, o que facilitava na administração dos engenhos e partidos. Ao contrário das demais mulheres da colônia – e até mesmo de Portugal – na maioria analfabetas, mais da metade das cristãs-novas do Rio de Janeiro sabiam ler e escrever. Praticamente todos os homens cristãos-novos eram alfabetizados.
Para concluir, com o término da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos em 1773, por ordem do Marquês de Pombal, cada vez menos foi possível distinguir os marranos na sociedade ampla. Entretanto, trabalhos recentes, como o do genealogista Paulo Valadares e do antropólogo francês Nathan Wachtel, resgatam através da memória as origens marranas do povo brasileiro.