A Língua é bela e mal utilizada


Arnaldo Niskier

 

Quando ia mais acesa a discussão em torno do Acordo Ortográfico de Unificação da Língua Portuguesa, com alguns escritores de Lisboa criticando a sua implementação, criou-se uma dúvida sobre a posição a ser adotada por José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura. Seria a favor ou contra?
 
O autor de “A viagem do elefante”, com a sua linguagem característica, veio ao Rio de Janeiro e a São Paulo, afirmando tacitamente que temos uma língua bela, “mas mal utilizada”. Segundo ele, a língua portuguesa está bastante mal no ensino, com construções equivocadas. Na ABL, defendeu que a língua seja vária e uma, sem se ater a um só formato, “ressuscitando palavras que, muitas vezes, pensávamos que tinham sido sepultadas.” Sob esse aspecto, viu dados positivos no Acordo, mas deixou claro que ele deve ser implantado com todos os cuidados, a fim de preservar a cultura diversificada em que está inserido.
 
Saramago é um consagrado pensador: “Não me conformo com o que os homens fazem aos homens.” Particularmente, na língua portuguesa (ele afirma que há várias línguas portuguesas), sente necessidade de sacudi-la, a partir da realidade de que viveu duas grandes revoluções: uma causada pelo livro “Viagens da minha terra”, de Almeida Garret, com uma língua nova, reflexiva, rápida, fora das frases setecentistas intermináveis, e a outra com “O nome de guerra”, de Almeida Magalhães, que nos dá conta sem sentir, lentamente, do valor da liberdade de criação.
No livro “A viagem do elefante” (que se chama Salomão), o leitor é conduzido pela história relativamente simples porque não há muito o que inventar (não é uma história de amor, não há conflitos entre personagens). Trata-se só de um elefante que vai andando, andando, andando. O leitor é conduzido pela linguagem e sob esse aspecto o escritor português, na conferência da ABL, destacou como é importante esse fator, para despertar o interesse do público: “É impossível imaginar o Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, sem aquela linguagem específica. Não há outra maneira de contar aquilo.”
 
Muito aplaudido, bem disposto depois de enfrentar uma grave pneumonia, Saramago afirmou que armazenamos camadas lingüísticas ao longo da vida. Não criamos a fala que usamos, ela está na sociedade, na vida coletiva, e nós a absorvemos. Esses sedimentos lingüísticos são numerosos, desde a infância, e falamos de acordo com o último sedimento que se deposita sobre os anteriores da nossa história pessoal. O tom narrativo é mais do que a ressurreição lingüística de um passado representado agora por pinceladas de modernidade. É mais do que isso.
Ao agradecer a presença de José Saramago, o acadêmico Cícero Sandroni, de forma resumida e extremamente feliz, recordou o seu passado de poeta, cronista, dramaturgo, contista e romancista. Lembrou da grande emoção vivida com a leitura do seu “Manual de caligrafia e pintura”, para se referir depois ao preferido “O ano da morte de Ricardo Reis”, que começa no Rio de Janeiro, em 1935, com um extraordinário enredo. Foi uma tarde de muito aprendizado – e emoção.