As crônicas de Athayde


Arnaldo Niskier

 

De jornalista para jornalista, de acadêmico para acadêmico, de nordestino para nordestino, Murilo Mello Filho prestou bonita homenagem a Austregésilo de Athayde, que presidiu a Academia Brasileira de Letras por mais de 34 anos. Resolveu escolher suas 117 melhores crônicas, de uma imensa e variada relação (Editora Global).
 
Trabalho de garimpo, feito com muita seriedade, abrangendo uma trajetória de cerca de 60 anos. Lembro da rotina diária de Athayde. De manhã, em casa, era difícil falar com ele. Logo cedo, lia os jornais, sentava à máquina e fazia o que ele chamava de dois artigos: o editorial do Jornal do Commercio /RJ e a sua crônica, sempre oportuna, em estilo direto, que deu origem ao livro “Vana Verba”, uma das marcas do escritor e orador pernambucano (1898-1992).
 
Athayde, como bem afirmou Pedro do Couto, foi testemunha do tempo. Participou direta ou indiretamente de fatos da nossa história, como os 18 do Forte, a Revolução de 30, a Revolução de 32 (que lhe valeu um exílio na Argentina), a Revolta de 35, o Estado Novo de 37, a entrada do Brasil na II Guerra Mundial, a Constituição de 46, a morte de Getúlio e a vitória de JK em 1955. Escrevia sobre tudo e todos, abrigando suas idéias em O Jornal e no JC, além de toda a cadeia associada, de que foi diretor durante muitos anos.
 
Tema preferencial? Quem lhe acompanhava os passos mais de perto sabia que era um apaixonado pelos direitos humanos, redator que fora da Declaração Universal, de que ele se orgulhava muito. Recebeu diversos prêmios pela firmeza de suas convicções e, na sua rica biografia, podem ser assinalados fatos notáveis. Durante o período militar vezes sem conta saiu em defesa da liberdade de imprensa. Corajosamente, depois de uma das prisões de Carlos Heitor Cony, enfrentou os seus algozes, testemunhando a favor do jornalista que à época escrevia no jornal Correio da Manhã (O Ato e o Fato).
 
Embora agnóstico, gostava de discutir as idéias do historiador francês Ernest Renan, católico convicto. Respeitava a opção religiosa da sua amada Maria José, companheira de toda a vida, a quem não deixou de homenagear, depois do seu prematuro falecimento: toda noite, antes de dormir, colocava uma rosa no travesseiro ao lado, uma forma de se certificar de que ela velaria por seu sono, lá no céu em que se encontrava.
 
Curiosos eram os encontros com Abgar Renault, seu colega de diretoria. Enquanto este discorria, de memória, os títulos de todas as obras de William Shakespeare, por ordem cronológica, Athayde, sentindo-se “um menino de 30 anos”, recitava o nome de todos os Estados norte-americanos e, de quebra, dizia textos inteiros do Novo Testamento, lembrança inesquecível dos seus tempos de seminarista na Prainha (Ceará).
 
Edla Van Steen, ao programar esta seleção de crônicas de Athayde, permitiu que revivêssemos esta grande figura da cultura brasileira. Murilo foi ainda mais feliz, revivendo “o admirável retratista de mais de meio século da instigante vida brasileira, que descreveu como mestre, cronista-testemunha e, não raro, como participante de uma época de ouro da nossa história.”