Em defesa da Tradição


Arnaldo Niskier

Uma das coisas mais extraordinárias da Academia Brasileira de Letras é o seu inequívoco respeito à tradição. Isso a torna cada vez mais forte. A sua história é alvo da maior consideração, sendo sempre lembrada por ocasião das suas respeitadas efemérides.
 
Nos 125 anos da ABL sempre se recorda a influência da Academia Francesa na sua formação, a partir dos movimentos iniciais do Conde Richelieu. Não vemos razão para abandonar esse caminho, como se tomássemos a decisão de adotar um estranho e inexplicável  arrependimento.
 
Os fatos da tradição pertencem à história da Academia Brasileira, como é o caso do vistoso fardão e da entrega do diploma e da espada. Há mais de 100 anos que a espada integra as nossas cerimônias de posse e não vemos uma razão plausível para eliminar esse item. Sob que pretexto?
 
São inúmeros os estudos, antigos e recentes, sobre a importância dos símbolos na vida e na cultura dos povos. De alguma forma eles são uma linguagem cifrada das aspirações e dos ideais humanos. Por isso mesmo existem desde tempos imemoriais  e devem continuar existindo. São tão importantes para a cultura dos povos que, hoje, a Semiótica (semeion =sinal) – ciência que estuda os significados da linguagem e dos símbolos é muitíssimo conceituada. 
 
Existem símbolos com significados profundos dentro de um determinado contexto histórico e cultural. Quando abraçados com ardor, manifestam e alimentam o respeito e o despertar de energias insuspeitas. É o caso da espada da Casa de Machado de Assis, que representa o espírito de resistência dos imortais e aponta para um nível ainda mais profundo, tentando traduzir convicções e valores que se apresentam como indissociáveis para a sobrevivência de nossa instituição.
 
Aproveito a oportunidade para lembrar a vida e a luta de Austregésilo de Athayde, que acompanhei muito de perto, inclusive pelo livro “O século de um liberal”, escrito por Laura e Cícero Sandroni. O grande presidente da Casa de Machado foi um defensor intransigente dos seus postulados, admitindo raríssimas exceções.
 
Ele foi um democrata ortodoxo. São suas palavras: “O dever de todos os patriotas está em manter a cabeça serena dentro da firmeza de suas convicções democráticas. Quaisquer incitamentos de um lado ou de outro provocam reações que nos aproximam cada vez mais da anarquia...O destino do Brasil é a democracia liberal. Fora desse regime de compreensão, tolerância, paz e justiça, cairemos no abismo.” Essa foi sempre a sua posição.
 
Foi com esse espírito que, no dia 7 de novembro de 1973, já sob a vigência do AI-5, no governo Médici, que Athayde publicou o artigo “Uma consciência livre”, saudando os 80 anos de Sobral Pinto, o advogado defensor dos presos políticos, execrado pela ditadura militar.
 
Vejam o compromisso secular da ABL com os princípios democráticos. Nada, pois, a nenhum pretexto pode servir de mote para a mudança desse comportamento.
 
Como disse o presidente José Sarney, “Athayde foi a única unanimidade nacional”. Por isso mesmo, não é conveniente contrariar o seu pensamento. Isso foi dito em sessão solene, no Senado da República, no dia 25 de setembro de 1995. Em Brasília, fui o representante da ABL. Sempre respeitei a ideia de Athayde de não mexer no Regimento da Academia. Agora, essas alterações, apesar do sentido de modernidade, não fazem nenhum sentido. O símbolo refere-se à junção entre o transcendente e o homem que o utiliza como uma forma de comunicação. É a própria linguagem da literatura, em seu sentido maiúsculo. Estrutura-se em âmbito hermenêutico, rompendo as barreiras do físico e se projetando além dele para mostrar o seu significado. 
 
O mundo é constituído de histórias e tradições iniciadas no passado, com fortes significados e conceitos. É essencial manter a chama da memória acesa. Cultura é uma expressão da construção humana. E isso deve ser mantido. Para sempre. As tradições precisam ser compreendidas para que não se percam no tempo. 
 
Assim, votamos pela manutenção, nas cerimônias de posse de novos acadêmicos, da simbólica entrega dos diplomas e das espadas, que vêm sendo feita desde a criação da ABL, há 125 anos, segundo modelo que segue o exemplo da Academia Francesa.