Os críticos pelos críticos


Arnaldo Niskier

São tantas as homenagens que a Academia Brasileira de Letras presta à literatura, na esteira da sua incansável missão de prestigiá-la, que teria de chegar o momento de focalizar enfaticamente o papel desempenhado pelos críticos, categoria nem sempre muito bem compreendida.
 
Tomemos o exemplo dessa figura extraordinária que foi Bárbara Heliodora, recentemente falecida. Estudiosa de Shakespeare, que conhecia como ninguém, era impiedosa com as montagens teatrais que não faziam justiça ao bardo inglês. E com isso muitos atores e diretores se sentiam injustamente atingidos pela verrina da escritora, que conheci pessoalmente – e disso muito me orgulho. Era uma pessoa incrível, que dava preciosos ensinamentos ao Conselho Cultural da Fundação Cesgranrio, onde nos reuníamos.
 
Devemos  abordar a missão dos nossos críticos, a partir da compreensão de que literatura é emoção e sentimentos. Segundo o escritor Ignácio de Loyola Brandão, também  jornalista de grandes méritos, “a literatura, ao longo da sua imensa trajetória, sempre falou do homem e sempre falou de emoção. Desde Shakespeare, falando de ciúme e dúvida. D. Quixote, que foi o primeiro romance estruturado de histórias, até Jorge Luís Borges, passando por Vidas Secas, tudo isso é a condição humana colocada no papel”. E com os críticos cumprindo a sua trajetória de iluminar os caminhos da compreensão de cada um dos livros que eles cuidadosamente examinam, para recomendar ou não a sua leitura. Assim se construiu o cânone literário nacional.
 
Um dos primeiros tipos de crítica a surgir na imprensa foi a crítica literária, dedicada a analisar livros, romances, poemas e outras obras de literatura. No século XIX, escritores como Victor Hugo, Émile Zola e Machado de Assis faziam crítica literária ao mesmo tempo em que publicavam os seus próprios trabalhos. Posteriormente surgiu a crítica na política, como uma conquista social.
 
Diferente do que acontece em outras áreas, vários autores consagrados exerceram (e até hoje exercem) crítica literária, comentando trabalhos de colegas e, por vezes, passando de vidraça a atiradores de pedras. Este tipo de inversão de papeis, entretanto, é menos comum nas outras críticas (como cineastas fazendo crítica de cinema, por exemplo).
 
Machado de Assis, patrono da ABL, revelou a alma da população. Escreveu sempre com uma boa dose de humor, sem ser grotesco, sublime ou bizarro. A ironia do seu texto explica as contradições da sociedade e também a pobreza intelectual do seu tempo, como se pode depreender da leitura da crônica de 1o de agosto de 1876: “Oh, se tu tens algum filho, leitor amigo, não o faças político, nem literato, nem estatutário, nem pintor, nem arquiteto! Pode ter algum pouco de glória, e essa mesma pouca; muita que seja, nem só de glória vive o homem. Cantor, isso sim, dá muitos mil cruzados, dá admiração pública, dá retratos nas lojas; às vezes chega a dar aventuras romanescas”. É esse espírito que os críticos buscam nas obras que pressurosamente examinam, como se lavrassem preciosas minas de diamantes. Sem a busca do reconhecimento improvável.
 
Tomando por empréstimo o pensamento do acadêmico e poeta Carlos Nejar, no seu alentado livro sobre a história da literatura brasileira, pode-se afirmar que a crítica tende à autobiografia. O crítico cria o seu objeto, enchendo-o com sua subjetividade: “Até a lucidez que ilumina e desnuda o texto jamais deixará de ser autobiográfica.” O que faz o crítico é a qualidade do olhar e a própria crítica tende a ser dialógica, em busca de verdade e valores. Concordando com Montaigne, quando afirmava que “o mundo não passa de um eterna gangorra, onde tudo se alterna sem cessar”. Assim ele constituiu a sua obra, afirmando que a arte da poesia é a arte do voo e a prosa é o voo da arte.