Crônica: Presença de Machado
Arnaldo Niskier
Machado de Assis não foi uma unanimidade. Concordamos com o meu saudoso colega da “Manchete Esportiva”, escritor Nelson Rodrigues, para quem “toda unanimidade é burra.”
Machado teve entre os seus críticos nomes da cultura universal, como Eça de Queiroz e Sílvio Romero. Pelo seu temperamento, nada belicoso, ele respondeu de forma suave a esses ataques.
A maior acusação que se fazia a Machado era a de que, por ser de origem negra, pouco defendia a negritude ou que costumava passar ao largo desse fato, o que não é exatamente a verdade.
Em 1906 Machado escreveu o conto “Pai contra Mãe”, em que ele mostra uma visão terrível de vida social brasileira do século 19. Um homem branco e pobre, Cândido Neves, ocupa-se em capturar negros escravizados em fuga, como era comum na época. Com recursos minguados, despejado de casa, se vê às voltas com a possibilidade de abandonar o filho recém-nascido. Não tem dinheiro para sustentar a criança.
Cândido encontra uma mulher negra, grávida, pela qual se pagaria vultosa importância se ela fosse capturada. Não tem jeito. Ela é capturada, apesar dos candentes apelos em contrário, foi espancada e devolvida.
Machado aborda no conto referido os mecanismos do racismo e da escravidão no Brasil, bem ao contrário do que se afirmava a seu respeito. O diretor José Fernando de Azevedo criou um espetáculo hoje em cartaz em São Paulo, intitulado “Ensaio sobre o Terror”, em que isso tudo é abordado, com muita propriedade. Só que o ator é branco, aparenta uma falsa neutralidade diante dos absurdos de uma situação indesculpável do ponto de vista da prática do racismo.
Há no espetáculo uma ilusão de solidariedade com a dor do outro. Não se tem muita certeza de que o objetivo de condenação do racismo seja plenamente atingido, mas a discussão está acesa – e isso é o que importa.
Trazer Machado de Assis para a luz da discórdia é missão relevante, e vale o registro. O maior dos nossos escritores não foi um espectador calado da triste realidade dessas terríveis e condenáveis perseguições.