Memória viva ou Viva a memória
Arnaldo Niskier
São um milhão e meio de pontos luminosos. Na escuridão do Museu das Crianças, no Yad Vashem de Jerusalém, o visitante vive o impacto da cena impressionante. Parece um imenso planetário. Cada uma daquelas pequenas luzes ou estrelas tem um nome, que é pronunciado com voz grave. Um milhão e meio de crianças mortas no Holocausto, pela bestialidade nazista. O Estado de Israel recorda os seus nomes, para que não haja esquecimento. Ali se vive uma comovente forma de respeito à memória do nosso povo. Esquecer, jamais!
O passado não é irrelevante. Com sofrimento e dor construímos o nosso futuro, hoje uma nação de 13 milhões de pessoas espalhadas pelo mundo. Temos os nossos heróis. A sua memória deve ser sempre reverenciada. Para que fiquem no espírito das novas gerações. Penso ter sido esse o principal escopo desta obra necessária.
A pesquisadora Rachelle Dolinger me deu uma grande alegria. Convidou-me para prefaciar o seu notável trabalho de resgate da memória de algumas das grandes personalidades que enriqueceram, com a sua cultura e contribuição, a presença judaica na cena brasileira.
São mais de 60 biografias, todas muito ricas. Não se trata de simples verbetes. Cada história tem os dados concretos – e mais comentários dos que tiveram, por parentesco ou amizade, o privilégio do convívio. Um dos méritos a destacar, na análise desta obra fundamental, é a sua atualidade, ou seja, Rachelle fugiu dos primeiros tempos da civilização brasileira, não se ocupou dos que para aqui vieram na frota de Pedro Álvares Cabral ou dos que sofreram as perseguições, sempre lamentáveis, dos tempos em que a Inquisição aqui se estabeleceu.
Há, no trabalho, um sentido de modernidade. Foram personalidades que, basicamente no século 20, prestaram imensa colaboração para que a comunidade israelita crescesse nos trópicos – e aqui estabelecesse vínculos com a nação brasileira, destacando-se como figuras ímpares.
Alguns dos nomes lembrados pela escritora Rachelle Dolinger são da minha intimidade, quer pelo conhecimento, quer pela relação de parentesco, como é o caso do médico Moszek Niskier, meu amado tio, que se notabilizou pelos serviços permanentes prestados ao Rio de Janeiro e ao País. Era um socialista convicto, desde as origens na Polônia, mas com o coração também voltado para o Estado de Israel, onde vive parte da família. Para sempre será lembrado.
Recordo Aarão Steinbruch, senador que foi o autor da sugestão do 13o salário; o General Abraham Ramiro Bentes, autor de significativas obras literárias sobre a Amazônia; o médico neurologista Abrahão Akerman. Costumava afirmar que “a saúde é um estado precário que não prenuncia nada de bom.” E ria gostosamente, com os seus quase1,90m de altura.
O editor Abrahão Koogan, Adolfo Aizen e a sua Editora Brasil-América; Adolpho Bloch (construtor de um império jornalístico); Aron Neumann, da inesquecível e combativa revista “Aonde Vamos?”; o professor David José Perez, com quem convivi (e muito aprendi) na então Universidade do Distrito Federal e o historiador Egon Wolff – todos autores de obras imorredouras.
Há na relação de Rachelle homens simples, como Gregório Biller, com quem visitei pela primeira vez o famoso Instituto Weizmann de Ciências; o Rabino Henrique Lemle e a sua grande realização, que é a sinagoga da Associação Religiosa Israelita; o amigo e vizinho Isaac Kerstenetzky, ex-presidente do IBGE, homem público de rigorosa retidão; o advogado Isaac Nuzman, um brilhante presidente da Sociedade Hebraica; o líder comunitário Jacob Schneider; o médico e cientista Jayme Landmann, que foi diretor da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ; o belíssimo escritor Joseph Eskenazi Pernidji – e aqui abro um parêntese para renovar a gratidão pelo conselho para que procurasse na Holanda a Biblioteca Rosentaliana, a fim de encontrar subsídios sobre o Rabino Shabettai Ben Meir Ha-Cohen, do qual sou descendente (em Amsterdã encontrei tudo o que precisava para escrever o livro “Shach, as lições de um sábio”); o matemático Leopoldo Nachbin, de fama internacional e Manasche Krepicky, um grande colaborador e amigo do Estado de Israel.
A lista é muito bem feita, naturalmente com os riscos de uma seleção, e sempre haverá alguém para recordar outros nomes. Mas Rachelle não esqueceu Noé Winkler, notável homem público na área de Economia; Noel Nutels, por muitos chamado de “Indio Cor-deRosa”, dada a intimidade dele com os silvícolas que conhecia como ninguém; o professor Pejsach Tabak, a quem tanto deve o Colégio Eliezer Stenbarg (hoje, Eliezer Max); Salo Brand, com sua voz macia, ex-vice-governador do Estado do Rio e presidente da Hebraica; o grande e respeitado pesquisador (geógrafo) Salomão Serebrenik, com quem trabalhei na Manchete; o líder comunitário Salvador Esperança; o advogado e escritor Samuel Malamud, uma das vigas-mestras da existência do Instituto Ort de Tecnologia; o jornalista Samuel Wainer, meu primeiro patrão no jornal “Última Hora” e outro líder comunitário de extrema simplicidade, que foi Tofic Nigri.
A relação está no livro. De memória, com muita emoção, recordei os nomes das pessoas que conheci, todas comprometidas pela ação de bem representar o espírito de realização da nossa comunidade. São pessoas que, muitas delas, deixando a Europa conflagrada, com o horror do nazismo, encontraram no Brasil terra fértil para o trabalho livre. E que nunca esqueceram as suas raízes judaicas, ao contrário, delas tinham muito orgulho. É o mérito maior de Rachelle Dolinger: resgatar a memória e oferecer à posteridade o exemplo do que cada um representou, em sua existência. É uma obra que ficará para sempre.