Império da razão


Arnaldo Niskier

Dividimos o mundo em gente decente e indecente. Quando algo dá errado, por exemplo uma política pública, automaticamente se pensa em roubalheira, não em incompetência dos administradores. Mesmo os bandidos falam em ética. Na cadeia, punem sem piedade quem abusou sexualmente de crianças ou de mulheres. É comum até um criminoso falar na sua “ética”, nos seus valores.
 
A ética e a lei não coincidem necessariamente. Muitas vezes, ser decente exige romper com a lei, como se questiona na peça Antígona. Foi assim sob o nazismo e sob todas as formas de ditadura. É assim também quando a desigualdade ou a injustiça imperam.
 
A palavra ética não tem o mesmo sentido para todos. Como observou o poeta, filósofo e crítico da cultura Paul Valéry (1871-1945), a existência dos “outros” é sempre inquietante para o egoísmo de um pensador: “Não compreender isso equivale a pensar em construir uma ciência dos valores da ação e uma ciência dos valores da expressão ou da criação das emoções – uma Ética e uma Estética – como se o palácio do seu pensamento parecesse imperfeito sem essas duas alas simétricas nas quais seu Eu todo-poderoso e abstrato pudesse manter cativas a paixão, a ação, a emoção e a invenção”.
 
Na metade do século passado, Valéry atacou alguns dos valores mais divinizados em nosso século 21: o império da razão, a necessidade do sucesso a qualquer preço, o endeusamento da eficiência e do desempenho. A idolatria da vitória não vacila, não se poupa: expõe-se. Foi, sem dúvida, um crítico de grande coragem intelectual. Em "Monsieur Teste", um dos livros mais importantes de Valéry, o filósofo se dedica a pensar o pensamento. Seu objeto não é o mundo, não está interessado em refletir a respeito das coisas a seu redor. Interessa-se, apenas, por sua própria maneira de pensar.
 
O pensamento contrasta com um mundo fascinado pelos recordes, pelas altas das bolsas e pelo consumo desmesurado. Fascinado, sobretudo, pela precisão. Falhar é o grande pecado de nossos dias. Por essas e outras ideias, Paul Valéry se tornou um pensador essencial para o século em que vivemos.
 
O pessimismo filosófico de Valéry, para quem “o universo não é mais do que um defeito na pureza do não-ser”, é similar ao sentimento de decadência de muitos poetas franceses do final do século XIX e lembra muito o português Fernando Pessoa que, com a máscara de Bernardo Soares, escreveu no Livro do desassossego: “Viver parece-me um erro metafísico da matéria, um descuido da inação.”
 
Se compararmos as definições que os antigos e os modernos dão à noção de ética, percebemos que são tão radicalmente diferentes que se cria em torno delas um verdadeiro campo de contradições. Os filósofos gregos sempre subordinaram a ética às ideias de felicidade da vida presente: o que estaria em jogo é o desejo do homem em realizar o “soberano bem” de tal maneira que “o sábio se baste a si mesmo”, isto é, dependa dele mesmo para ser feliz. Dizer que um homem é livre, para o filósofo grego, equivale a reconhecer que a felicidade está ao alcance de cada um. Hoje, a felicidade não é pensada em termos da moral antiga, mas em termos da eficácia técnica de consumo, das forças externas ao homem. A moral passou a ter uma importância quase convencional.